Vou deixando as cidades e dizendo comigo mesmo enquanto delas me despeço: "Aqui devia eu viver." E isto são homenagens. Mas agora duas terras se aproximam onde não me importaria de morrer: Florença e Siena. E esta homenagem é muito maior.
 

(...) decidi-me a virar as costas às magnificências ribeirinhas do Canal Grande e penetrei no interior da cidade. Fugi deliberadamente aos espaços abertos e deixei-me perder, sem mapa nem roteiro pelas ruas mais tortuosas e abandonadas (as calli), ate dar por mim no coração obscuro de una cidade que enfim se revelava. E fio então que supus (e suponho agora) ter compreendido a atitude de Visconti: se um passe de mágica tirasse a Veneza tudo quanto de obvio a ilustra aos olhos do mundo, a sua fascinação particular permaneceria intacta. O filme Morte em Veneza decorre na única Veneza real: a do silencio e da sombra, da negra franja que a água dos canais desenha no sente das fachadas, do cheiro insidiosamente pútrido de uma umidade que nenhum sol levanta. De quantas cidades conheço, Veneza é a única que manifestamente morre, que o sabe, e, fatalista, não se importa muito.

José Saramago
Manual de pintura e caligrafia